top of page
Buscar
  • Foto do escritorLuciana Garbini De Nadal

CRIANÇAS DO FUTURO: TRABALHANDO OS PAIS NA PREVENÇÃO DE NEUROSES

RESUMO

Reich acreditava em um mundo melhor através do investimento nas crianças do futuro. Se as neuroses são criadas nos primeiros anos de vida, uma intervenção precoce buscando conscientizar os pais para prevenir bloqueios energéticos e emocionais na criança criará indivíduos mais saudáveis e, consequentemente, uma sociedade melhor. A psicologia corporal e a terapia dos sistemas familiares internos são abordagens que trazem grandes contribuições para um trabalho de prevenção de neuroses, desenvolvendo a consciência dos futuros pais de suas crianças interiores, o que os tornarão aptos a cuidar de outro ser.


Palavras-chave: Crianças do futuro. Sistemas familiares internos. Prevenção de neuroses. Psicologia Corporal. Reich

Reich atuou não apenas na clinica individual, mas também tinha um olhar para o social. Ele acreditava em uma sociedade melhor. Se as marcas mais significativas de um ser humano ocorrem na infância, na interação com os cuidadores, conseguiremos prevenir muitos problemas emocionais intervindo precocemente. Reich criou o Centro Orgonômico para a Pesquisa sobre a Infância (OIRC) com o objetivo de estudar o que constitui a saúde natural da criança. Assim, foram escolhidos pais relativamente saudáveis emocionalmente e energeticamente, cujos bebês foram observados (REICH, s/d).

O OIRC atuava nos cuidados pré-natais de gestantes saudáveis com aconselhamento econômico-sexual dos pais sobre a liberação orgástica, avaliação do comportamento bioenergético do organismo, trabalho com a energia da mãe para mantê-la saudável, observação de que bloqueios energéticos poderiam interferir na gestação saudável e eliminação de práticas danosas ao bebê. O parto e os primeiros dias de vida do recém-nascido eram supervisionados, a fim de observar as expressões naturais da criança e remover qualquer bloqueio que atrapalhasse seu desenvolvimento saudável. O estudo seguia com a prevenção do encouraçamento durante os primeiros 5 ou 6 anos de vida e estudo do desenvolvimento posterior dessas crianças até muito depois da puberdade, a fim de preservar o princípio vital e não permitir que elas sejam moldadas por alguma instituição ou ideologia (REICH, s/d).

Reich (s/d) alertou aos profissionais envolvidos nesse projeto que em algum momento, suas próprias dificuldades apareceriam, afinal vivemos em uma sociedade doentia, na qual o ser humano tenta destruir a natureza viva nele mesmo e nos que o rodeiam. Reich percebeu que um organismo que se desenvolve de acordo com a lei da natureza é saudável em todos os níveis – energético, emocional e físico. Quanto mais desencouraçada uma pessoa está, mais ela consegue perceber o outro na realidade, sem a interferência de seu passado, conseguindo atender às necessidades do outro. Essa capacidade de sentir o outro, foi chamada por Reich de “sensação de órgão”.

As cargas do passados não processadas causam o que Reich chamou de couraças, que se manifestam no psíquico (couraça psíquica) e no físico (couraça muscular), resultando em bloqueio energético. Uma pessoa muito encouraçada não consegue perceber o outro, pois não percebe nem mesmo suas próprias emoções que estão ancoradas no corpo de forma inconsciente, interferindo diretamente em sua vida. Assim, a pessoa percebe o mundo através de seus “óculos” do passado: com a carga emocional do passado, com as crenças negativas criadas pelos traumas que vivenciou e distorce as situações. Esta pessoa não está no presente, ela está presa às cargas do passado, agindo de forma reativa às situações atuais.

Durante o processo terapêutico, conforme a pessoa vai acessando o passado e desbloqueando essas cargas, ela consegue perceber as situações como elas são na realidade e responde de forma equilibrada às situações que se apresentam. Sempre que respondemos de forma exagerada, reativa, com muita emoção a algo, é porque estamos sob interferência do nosso passado, com a correspondente carga inconsciente. Conforme ampliamos a consciência de nós mesmos, conseguimos ter uma empatia natural pelo outro. Essa ampliação é acompanhada de um maior contato com nosso coração, o que faz com que percebamos a realidade como ela é: que somos parte de um todo; sendo assim, vamos querer o bem do outro, não vamos desejar o mal a ninguém.

Essa percepção é essencial no cuidado com uma criança. Observamos na clínica o quanto os padrões da família de origem se mantém atuantes no individuo. É difícil para o paciente perceber que repete o padrão que tanto lhe fez sofrer de seus genitores. Esse processo fica mais difícil quando o paciente tem filhos e se percebe repetindo comportamentos dos pais com estes, mesmo sendo de forma compensatória, fazendo o contrário do que os pais faziam, o que é igualmente prejudicial, pois em ambos os casos, a pessoa está presa ao padrão incorporado da família, não estando presente e equilibrada.

Segundo Maldonado (2013), a maternidade e a paternidade são momentos cruciais do ciclo vital que oportunizam à mulher e ao homem atingirem novos níveis de integração. É um momento de transição existencial que permite amadurecer e expandir a personalidade. Mas as pessoas que não tem um bom nível de consciência podem adotar uma solução patológica com a criança, projetando nesta seus conflitos infantis não superados. Pode ser um momento de aprofundamento da relação do casal ou de rompimento de uma estrutura já frágil e neurótica. A parturiente revive seu próprio parto ao dar à luz. A autora enfatiza a importância do ambiente pré-natal na saúde física e mental do ser que está sendo gestado, colocando este como um fator tão ou mais importante que os gens. As primeiras experiências de vida modelam a arquitetura do cérebro em desenvolvimento.

Já Gutman (2016) enfatiza o processo da mulher em sua literatura. De acordo com a autora, o que não é reconhecido conscientemente pela mãe é manifestado pelo bebê, pois este está em estado fusional com a mãe. Em função de sua pureza, o bebê não pode decidir conscientemente o que irá trazer à tona, o que torna essa relação profundamente rica, se utilizada de forma saudável pela mãe: se esta aproveitar para encarar seu inconsciente. Nos dois primeiros anos de vida do bebê, a mulher é uma mãe-bebe: sua identidade fica fusionada com ele. Essa sintonia é importante para perceber as necessidades da cria, garantindo assim a sua sobrevivência.

Gutman (2016) usou o termo criado por Jung de “sombra” para nomear a parte desconhecida de nossa psique que engloba também o que ela chamou de “mundo espiritual”. Segundo a autora, um recém-nascido é a manifestação organizada da sombra da própria mãe: o que ela rejeita, desconhece ou dói em seu ser.

Gutman (2016) coloca que muitas mulheres criam uma fantasia sobre a maternidade para não entrar em contato com suas memórias dolorosas de infância reativadas com o tornar-se mãe. Assim, a menina desamparada que há nelas surge ao se deparar com o bebê real com seus inúmeros desafios. Há muitos trabalhos de preparação ao parto que são apenas físicos e não levam em conta o psiquismo da mulher. Um profissional deve abordar a totalidade da biografia humana da mulher e perguntar sobre procedimentos banais, pois muitos problemas podem ser resolvido com pequenos detalhes.

Segundo Maldonado (2013), para uma boa orientação ao casal grávido é importante saber a história de cada um desde a infância, conflitos infantis não resolvidos, histórico familiar, contexto existencial da gravidez (se está dentro ou fora de um vínculo estável, idade do casal, se já houve abortos, se houve períodos de dificuldades quanto à fertilidade), características da gravidez (normal ou de risco), contexto socioeconômico, contexto assistencial. Há a ambivalência afetiva entre desejar e não desejar o filho, o que é natural, considerando essa grande mudança que envolve perdas e ganhos.

Maldonado (2013) cita um estudo realizado por Chertok (1966) que demonstrou uma importante associação entre fatores de personalidade e qualidade da gravidez e parto: mulheres com histórias difíceis de vida tendem a ter os piores partos. Trabalhos de preparação para o parto (que costumam envolver informações, exercícios físicos e de relaxamento) ajudam, mas esse estudo demonstrou que o aspecto psicológico afeta mais.

Na nossa sociedade atual, esse importante período de formação de um ser não é protegido. As mulheres carecem de rede de apoio, tendo, muitas vezes, que voltar logo ao trabalho, isso se não forem demitidas logo após a licença maternidade – caso bem comum, infelizmente. Gutman (2016) acredita que os pais não são suficientes para criar um filho, pois o ser humano foi desenhado para viver em comunidade. Toda puérpera precisa de apoio emocional. A rede de apoio permite ao casal se aliviar das tarefas cotidianas para poder ter momentos de intimidade física e emocional.

Nessa sociedade individualista em que as mães se vêem tão sozinhas, o trabalho da doula tem se mostrado muito importante, pois sua função é orientar, dar apoio emocional, como uma “grande mãe” das puérperas. O recém-nascido depende do equilíbrio emocional da mãe (GUTMAN, 2016).

Gutman (2016) alerta sobre a tendência de patologizar esse momento de encontro com a sombra o diagnosticando precipitadamente como depressão pós-parto. Isso ocorre porque esse processo é intenso durante o pós-parto. Tornar-se mãe-bebê é passar para outro estado de consciência, por isso é natural que as mulheres precisem “enlouquecer” um pouco. A conscientização e o enfrentamento de sua própria sombra libera o filho dessa carga. A criança pequena não entende o que sente, por isso é importante que os cuidadores as ajudem nomeando suas necessidades. O problema é que os cuidadores também não foram ensinados a nomearem suas próprias emoções.

Assim como Reich, Gutman (2011) tem um olhar sobre o social, colocando o quanto nossa cultura patriarcal é prejudicial. A autora diz que esta se baseia na submissão, e para obter a submissão de uma mulher, a ferramenta mais importante é a repressão sexual. Como a mulher está intimamente ligada à seu corpo através de seus ciclos vitais, este passou a ser considerado sujo, pecaminoso. A moral cristã contribuiu nesse processo doentio. Assim, perde-se contato com o corpo, com as sensações, com as emoções. A mãe perde contato com seu instinto materno, recorrendo a orientações externas para lidar com sua cria, no lugar de confiar em suas próprias percepções. Os traumas vivenciados pela mãe durante sua infância congelam e anestesiam seu corpo e suas emoções. Isso prejudica o parto e o contato com a criança. Este momento tão importante da sexualidade feminina que é o parto virou mais um procedimento da medicina.

De acordo com Volpi & Volpi (2006), as experiências que vivenciamos durante nosso desenvolvimento ficam registradas na memória celular em forma de imprintings, marcas, registros. Os mecanismos de defesa mantém as memórias de estresses e frustrações “adormecidas”, até que um estresse secundário – momento crítico de vida – as ativa, trazendo à tona emoções que a pessoa não tinha consciência de estarem ali, podendo resultar em crises. Tornar-se mãe e pai é um desses momentos críticos que despertam essas memórias até então inconscientes.

A terapia reichiana consegue trabalhar todos os aspectos de forma bem completa: o desbloqueio energético da grávida a permite elaborar questões emocionais da infância e, ao mesmo tempo, desenvolve a capacidade de se entregar ao próprio corpo, fator essencial para a hora do parto. São utilizados actings, que são intervenções corporais que reproduzem etapas do desenvolvimento, permitindo ao paciente entrar em contato com sentimentos até então inconscientes e expressar a carga emocional, liberando energia e amadurecendo aquela etapa (NAVARRO, 1996)

Pinuaga e Serrano (1997) também desenvolveram trabalhos de profilaxia orgonômica que denominaram de Orgonoterapia pré-natal. Os autores explicam quais são os indícios de saúde nos futuros pais: couraças flexíveis, respiração livre, bom contato ocular, boa pulsação bioplasmática, segmentos diafragmático e pélvico liberados (potência orgástica), sentimentos calorosos e ternos pelo parceiro e pelo bebê.

Tenho utilizado com muito sucesso na clínica a terapia dos sistemas familiares internos conjuntamente com o trabalho corporal. Essa abordagem entende o processo intrapsíquico como um sistema: temos partes dentro de nós, como se fossem vários “eus” de varias épocas de nossas vidas e que interagem entre si e dominam nosso ser interior em alguns momentos. Podemos observar claramente esse processo quando em um momento crítico, a pessoa regride, age de forma infantil, desequilibrada, a voz se torna mais aguda: é a criança interna que é ativada naquele momento, dominando o adulto. Isso ocorre porque essa parte sofreu algum tipo de trauma, frustração no passado e não foi acolhida como necessitava. Na terapia, buscamos contatar com essa parte e conversar com ela, dar o que ela necessita, pois na terapia dos sistemas familiares internos, acredita-se na existência de um self, que é uma parte diferenciada que todos temos e que dispõe de todos os recursos que necessitamos. É essa parte que deve liderar. Schwartz (2004) descreve o self como líder interno ativo e compassivo e também como um estado de espírito sem fronteiras e expansivo.

Os traumas fazem com que a pessoa dissocie o self das sensações do corpo como forma de defesa. Assim, outras partes da pessoa perdem a confiança no self e assumem o comando. O objetivo da terapia nessa abordagem é integrar todas as partes com a liderança do self. Para isso, cada parte deve receber o que necessita. Este estado de consciência descrito como self nessa abordagem coincide com o estado da pessoa relativamente desencouraçada, pois consegue estar presente e centrada, dispondo de seus recursos internos. Essa abordagem concorda com a abordagem reichiana por ser não-patologizante: ambas acreditam que o ser humano tem muitos potenciais, e o problema ocorre porque os recursos internos estão restringidos (SCHWARTZ, 2004).

“Os adultos reagem aos sentimentos de uma criança magoada da mesma maneira extrema com que reagem a suas próprias partes internas infantis feridas – com impaciência, negação, crítica, repulsa e negligência” (SCHWARTZ, 2004, p.49). O autor diferencia os tipos de partes: há os exilados, que são as partes infantis desamparadas, os gerentes, que são as partes que usam o controle como forma defensiva, muitas vezes criticando os exilados, e os bombeiros que são responsáveis por atos impulsivos, também com o objetivo defensivo de não deixar os sentimentos infantis virem à tona, deixando a pessoa vulnerável.

Através das experiências no consultório, observei que quanto mais um paciente consegue conectar com seu self e cuidar de sua criança interior, maior sua capacidade de cuidar de uma criança exterior. É possível, inclusive, observar o tipo de apego que essa pessoa tem internalizado de seus genitores pela forma como interage com sua parte infantil. Na terapia buscamos conscientizar esse padrão de funcionamento para então poder remover as cargas do passado que até então estavam sufocando o self. Ao liberar o paciente do padrão patológico, emergem os recursos internos provenientes de boas lembranças de infância e de experiências de superação. Este estado de presença no aqui-agora serve para tudo na vida, para todas as relações, especialmente na relação pais e filhos, pois são as primeiras referências para a criança, trazendo marcas para toda a vida.

As histórias de vida dos pacientes adultos mostram bem claramente o quanto os primeiros anos de vida são delicados, o quanto pequenas coisas podem se tornar enormes para a criança, pois esta depende dos pais para sobreviver, e qualquer situação que possa significar rejeição, a criança vive como perigo de morte. Fazer terapia é libertar-se do passado, perceber que agora somos “grandes” e podemos fazer escolhas, agir, ir em busca do que precisamos e do que nos faz feliz. Reich deixou um legado de esperança ao mostrar que o natural é ser feliz, estar satisfeito com a vida. Pais que trabalham o autoconhecimento rompem o ciclo de repetições de padrões patológicos transgeracionais, deixando uma herança emocional mais saudável às próximas gerações e, consequentemente, contribuindo para uma sociedade melhor, que era o sonho de Reich.


Referências


GUTMAN, L. A Maternidade e o encontro com a própria sombra. 9ª ed. Rio de Janeiro: Editora Best Seller LTDA, 2016

GUTMAN, L. O poder do discurso materno. Introdução à metodologia de construção da biografia humana. São Paulo: editora Àgora, 2011

MALDONADO, M. T. Psicologia da gravidez. Rio de Janeiro: editora Jaguatirica, 2013

NAVARRO, F. Metodologia da Vegetoterapia Caractero-Analítica: sistemática, semiótica, semiologia, semântica. São Paulo: editora Summus, 1996

PINUAGA, M.; SERRANO, X. Ecología Infantil Y Maturación Humana. Valencia: Publicaciones Orgón, de La Escuela Española de Terapia Reichiana ES.TE.R), 1997

REICH, W. Crianças do futuro. Curitiba: Centro Reichiano, s/d.

SCHWARTZ, R. C. Terapia dos sistemas familiares internos. São Paulo: editora Roca, 2004

VOLPI, J. H.; VOLPI, S. M. Crescer é uma Aventura! Desenvolvimento emocional segundo a Psicologia Corporal. 2ª ed. Curitiba: Centro Reichiano, 2008.


Artigo criado como base para o laboratório teórico-prático Crianças do Futuro: trabalhando os pais na prevenção de neuroses apresentado no 24º Congresso Brasileiro de Psicoterapias Corporais do Centro Reichiano / PR e disponível nos Anais do congresso no site do Centro Reichiano no seguinte endereço:



AUTOR e APRESENTADOR

Luciana Garbini De Nadal / Porto Alegre / RS / Brasil

Psicóloga formada pela UFRGS (CRP 07/16819), Especialista em Psicologia Corporal – Centro Reichiano / PR, Terapeuta de EMDR, terapeuta de Brainspotting avançado, Formação em Orgonomia Aberta (Stolkiner). Massagens Bioenergéticas (Ralph Viana). Meditações Ativas.




238 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page