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Foto do escritorLuciana Garbini De Nadal

A QUESTÃO DA ORALIDADE E O SENTIMENTO DE GRATIDÃO

Atualizado: 7 de fev. de 2020

RESUMO

O traço de caráter oral é praticamente presente em maior ou menor grau em todos os tipos de caráter neuróticos. Isto é facilmente observado na clínica: grande parte da demanda em terapia diz respeito a questões oriundas dessa primitiva relação com nosso primeiro objeto de amor que é a mãe. Essas experiências formam a base de como lidaremos com situações de vida e de como nos relacionaremos posteriormente. A maior ilusão das pessoas é achar que o amor virá de fora, quando na verdade ele vem de dentro de nós no momento em que abrimos nossos corações e sentimos gratidão. Este artigo se propõe a refletir acerca desse processo de amadurecimento da oralidade.

Palavras-chave: Amor. Gratidão. Inveja. Oralidade. Satisfação.


Conforme Navarro (1996), o borderline é o caráter, dentro da caracterologia pós-reichiana, mais presente estatisticamente na população mundial: 45%. O bloqueio oral é o mais característico dessas pessoas, assim como é dificílimo não encontrarmos algum grau de traço oral em uma pessoa. Isso significa que o problema da oralidade permeia nossa cultura intensamente, influenciando diretamente nossos padrões de pensamento e comportamento. Tenho observado em meu trabalho clínico a importância de trabalhar a oralidade: muitas pessoas vêm à terapia com depressão, dificuldade de relacionamento, carências afetivas, sensações de falta, de vazio, de solidão. Por isso, meu interesse em estudar mais sobre esse tema, especificamente da solução do problema da oralidade.

De acordo com Stolkiner (2008), a oralidade é uma função normal, presente em todos nós. Ela compreende dois processos energéticos: o processo de incorporação, que é a forma como o mundo entra em nós e nós entramos no mundo, e o processo de expressão. São caminhos naturais da energia: o primeiro vai da boca ao estômago, o segundo vai do abdome até a boca e rosto. Um dos principais transtornos de um bloqueio nessa fase do desenvolvimento emocional que remonta à amamentação é a depressão.

Justamente pelo fato de o bebê estar saindo do útero e passando a introjetar o que vem do mundo externo é que Volpi & Volpi (2008) chamaram essa etapa de incorporação. Como o seio da mãe é nosso primeiro objeto de amor e representa o mundo externo, as primeiras introjeções são do sabor do leite, a disposição da mãe em amamentar, o cheiro desta, o contato epidérmico que envolve o corpo do bebê, etc. Se a mãe é ansiosa e agitada, seu organismo descarrega na corrente sanguínea bile, que chega ao leite conferindo a este sabor amargo. A mãe representa a realidade externa que ora frustra, ora satisfaz; assim o bebê desenvolve seu princípio de realidade.

No início da fase oral, o bebê está em um estado fusional com a mãe, tendo a ilusão de que o seio é parte integrante de si, como um prolongamento de seu corpo. Aos poucos, ele vai percebendo que o seio é algo separado de si, e se inicia o processo de diferenciação eu/ não-eu: início da estruturação do ego. O bebê então atribui ao seio a origem de suas sensações boas – vindas do seio bom – ou ruins – vindas do seio mau. Portanto, o primeiro objeto é cindido, e há o medo de que o seio ruim aniquile o seio bom (TROTTA, 1997).

Durante essa etapa, o bebê vai passando da dependência e simbiose com a mãe para uma progressiva independência: o nascimento dos dentes e o amadurecimento do organismo permitem que o bebê vá desmamando e passando a uma dieta de alimentos pastosos; paralelamente, a criança vai saindo do colo da mãe para explorar o ambiente à sua volta. Estas são aprendizagens, a nível emocional, de nos reconhecermos como seres únicos e responsáveis por nós mesmos (Volpi & Volpi, 2008).

"Na etapa oral, o seio é a fonte da nutrição, a fonte da vida para o bebê. Um desenvolvimento satisfatório depende de uma boa introjeção deste objeto primário, de forma que se enraíze de forma segura no ego. “Esta proximidade física e mental como o seio gratificante em certa medida restaura, se tudo decorre bem, a perdida unidade pré-natal com a mãe e a sensação de segurança que a acompanha” (KLEIN, 1974, p. 30). Isto depende do quanto o bebê consegue catexizar o seio ou sua representação simbólica – a mamadeira. Assim, a mãe é transformada num objeto amado.

"Um elemento de frustração por parte do seio acha-se fadado a ingressar na mais primitiva relação do bebê com aquele, porque até mesmo um estado alimentar satisfatório não pode substituir completamente a unidade pré-natal com a mãe. Além disso, o anseio do bebê por um seio inexaurível e onipresente de modo algum se origina apenas da ânsia por alimento e dos desejos libidinais, porque a premência, mesmo nos estágios mais primitivos, a obter evidências constantes do amor da mãe fundamentalmente se enraíza na ansiedade" (KLEIN, 1974, p. 31).

Conforme Klein (1974), há uma luta entre os instintos de vida e de morte, resultando numa ameaça de aniquilação do eu e do objeto por impulsos destrutivos. Estes são fatores essenciais no inicio da relação do bebê com a mãe, pois ele deseja que o seio, e depois a mãe, acabem com esses impulsos destrutivos e com o sofrimento trazido pela ansiedade persecutória. Na relação com a mãe, não há como não ocorrerem ressentimentos, o que aumenta o conflito entre amor e ódio, acarretando na percepção de haver um seio bom e um seio mau; há uma sensação de perda e recuperação do objeto bom, o que caracteriza a mais primitiva vida emocional. O seio bom não é apenas fonte de nutrição em termos de alimentos, mas também em termos afetivos, sendo o protótipo da bondade materna, da inexaurível paciência, generosidade e criatividade. O objeto primário, portanto, se torna a base para a esperança, a confiança e a crença na bondade.

Como o bebê sente que o seio tem tudo o que necessita – fluxo ilimitado de leite e amor – e o guarda para sua gratificação, este é o primeiro objeto a ser invejado. Isto ocorre tanto com o seio satisfatório quanto com o seio insatisfatório, pois apesar da gratificação sentida pelo bebê, ele também inveja essa dádiva que parece inatingível. Quando o bebê se sente privado pelo seio, passa a considerá-lo mau por guardar para si toda essa fonte de leite, amor, cuidados. Esta situação somada ao sentimento de frustração e ódio perturba a relação com a mãe e dificulta sua construção do objeto bom aumentando o sentimento de inveja. Quando esta se torna muito intensa, podem se desenvolver características paranóides e esquizoides acentuadas, prejudicando o bebê, o fazendo enfermar (KLEIN, 1974).

“A inveja é o sentimento irado de que outra pessoa possui e desfruta de algo desejável – sendo o impulso invejoso tirá-lo dela ou espoliá-la” (KLEIN, 1974, p. 33). Enquanto o ciúme envolve uma relação de três, a inveja diz respeito a uma relação entre duas pessoas e remonta a uma fase bem primitiva de relação com a mãe. A voracidade é uma ânsia impetuosa e insaciável de esvaziar, sugar e devorar completamente o seio, buscando uma introjeção destrutiva. Na inveja não só isto ocorre, como também há um desejo de depositar maldade, excrementos maus e partes más do eu na mãe, especialmente dentro do seio desta, com o propósito de espoliá-la e destruí-la, o que significa acabar com sua criatividade. Este processo é um aspecto destrutivo da identificação projetiva e se origina de impulsos sádico-anais no início da vida. O principal mecanismo na voracidade é a introjeção, enquanto que na inveja é a projeção que impera (KLEIN, 1974).

Conforme Klein (1974), o seio bom primário, após ser espoliado pela inveja, perde seu valor, tornando-se mau, afinal foi mordido e envenenado por urina e fezes. Quando a inveja é demasiada, esses ataques aumentam de intensidade e de duração, dificultando ainda mais a reconquista do objeto bom perdido. A inveja, a voracidade e a ansiedade persecutória são vinculadas e intensificam uma à outra, afinal a sensação de ter causado um dano aumenta a ansiedade e os impulsos destrutivos. Pessoas invejosas são insaciáveis. Os ataques sádicos, por outro lado, passam mais rápido e, portanto, não destroem tanto a bondade do objeto, permitindo que este retorne e seja desfrutado.

O bebê deseja agradar a mãe e ser amado, assim como protegido de seus impulsos destrutivos e da ansiedade persecutória. Há uma ilusão de que a mãe é onipotente, podendo prevenir todos os males. A satisfação das necessidades e a gratificação do desejo de amor aliviam a ansiedade e trazem uma sensação de segurança ao bebê de que sua subsistência está garantida. Esta satisfação das exigências básicas proporcionada pela mãe se torna a base da segurança emocional e implica na fantasia inconsciente de não estarmos privados de amor e não perdermos nossa mãe (KLEIN, 1970). 166

De acordo com Klein (1970), os sentimentos de culpa decorrentes das fantasias do bebê em destruir a própria mãe em momentos de voracidade e ódio desencadeiam o impulso de sanar esses danos imaginários e fazer uma reparação à mãe. A culpa é um incentivo ao ato de reparação. O bebê então aceita substitutos para a mãe, pois não quer depender dela, temendo perdê-la no momento em que sua agressividade vier à tona. Aos poucos, o bebê vai buscando satisfação de outras fontes de prazer, tendo como referência as primeiras gratificações recebidas da mãe. O impulso de fazer reparação contém o desespero da culpa, trazendo a sensação de esperança. A criança se torna capaz de aceitar o amor e absorver a bondade existente no mundo externo. Há um equilíbrio entre “dar” e “receber”, essencial para a felicidade. Mais tarde, essa capacidade de transferir o amor de nossa mãe a outras fontes ajudará essa pessoa a lidar com fracassos e desapontamentos com relação a situações e relacionamentos.

Ainda conforme Klein (1970), tanto a frustração como a indulgência excessivas são prejudiciais e podem desencadear a doença maníaco-depressiva. Uma quantidade de frustração seguida da gratificação confere ao bebê a sensação de ter capacidade de lidar com ansiedades. Os desejos do bebê que não podem ser realizados totalmente contribuem para o desenvolvimento de atividades criadoras e para a sublimação. O conflito e a necessidade de vencê-lo enriquecem a personalidade, fortalecem o ego e desenvolvem a criatividade.

Situações de alimentação insatisfatória, privação e contexto desfavorável são fatores que intensificam a inveja, perturbando a gratificação plena. Um bebê bem gratificado, por outro lado, que conseguiu construir com segurança um objeto bom dentro de si tem forte capacidade de amor e gratidão, podendo suportar estados transitórios de inveja, ressentimento e ódio. Quando estes estados passam, o objeto bom é reconquistado, desenvolvendo na criança um ego forte e estável (KLEIN, 1970).

A criança que consegue sentir amor e confiança em relação aos pais internaliza estes sentimentos e mais tarde conseguirá reparti-los com outros e expressá-los para o mundo externo. Ela sente confiança em si e nos outros e tem convicção da própria bondade. Quando adulta, em momentos difíceis, terá uma referência de pais bons dentro de si, distribuindo a outras pessoas o auxílio e o amor de que necessita, conquistando alívio e reparação para si mesma (KLEIN, 1970).

"Em minha opinião, estas experiências constituem não apenas a base da gratificação sexual, mas também de toda felicidade ulterior, tornando possível a sensação de unidade com outra pessoa; tal unidade significa ser totalmente compreendido, o que é essencial para toda relação amorosa ou amizade feliz. Na melhor das hipóteses, essa compreensão não necessita de palavras para expressá-la, o que demonstra sua derivação da mais primitiva intimidade com a mãe no estágio pré-verbal" (KLEIN, 1974, p. 46).

Existem inúmeras formas de absorver o amor, a bondade e a beleza que vem de fora, e quanto mais se reforça essas atitudes, menos o indivíduo se deixa levar pelas frustrações, ressentimentos e ódios e mais seguro ele se torna. É necessária uma atitude de se libertar de ressentimentos para com nossos pais e perdoá-los pelas frustrações que vivemos; aí ficaremos em paz com nós mesmos. Além de nos proporcionar prazer, essas satisfações experimentadas podem reduzir até as mais primitivas e fundamentais frustrações. A capacidade de “dar e receber” se desenvolve bem, nos proporcionando bem-estar, felicidade e bons relacionamentos (KLEIN, 1970).

Na vegetoterapia caracteroanalítica, estas experiências caracterizam o momento em que o paciente adulto supera de maneira satisfatória sua oralidade de base e chega a um ponto bem próximo da genitalidade. Isto porque o segmento oral tem ligação funcional com o segmento pélvico: no momento em que o primeiro é amadurecido, a energia desce mais aos genitais, trazendo calor, nutrição, amor, criatividade, alegria de viver. A satisfação, o prazer e o amor experimentados na etapa oral, no curso do desenvolvimento, devem se deslocar para os genitais. A necessidade de fazer amor transforma-se, em certo momento, no desejo de fazer amor: a primeira exige satisfação imediata, enquanto que o desejo pode ser postergado (NAVARRO, 1995).

A função incorporativa própria da oralidade é uma função de entrada, enquanto que a função criativa é de saída. A função genital é uma função criativa por excelência: tudo o que criamos vem da energia que passa pelos genitais e se direciona ao futuro.

A solução do problema da oralidade está na satisfação de se dar algo a alguém quando se é adulto; quando se dá amor e não se espera receber. As pessoas costumam esperar que aquele amor que elas não tiveram na infância e que ainda lhes causa uma sensação de falta e de vazio venha até elas. Quanto mais nos ocupamos em receber, mais frustração sentimos e mais necessitados ficamos (Stolkiner, 2008). Diz Osho (1997, p. 115) “Se alguém pede amor, não obterá amor, porque o simples fato de pedir torna-o pouco amorável, torna-o antipático. O simples fato de pedir faz-se uma barreira”.

A pessoa deprimida costuma pôr seu foco de atenção no pior ângulo das situações que vive – nas faltas, nas dores, nas culpas... – e não percebe todas as coisas boas que estão ocorrendo em sua vida e ao seu redor. No momento em que invertemos o movimento abrindo nosso coração e amando no peito, sentimos um preenchimento e percebemos a riqueza ao nosso redor. “Assim que riqueza é a capacidade de abrir-se à abundância da experiência presente e pobreza é estar fechado a ela” (STOLKINER, 2008, p. 155). No lugar da inveja vem a gratidão, e a função natural de nutrir ganha espaço naquele indivíduo, fazendo-o irradiar toda essa riqueza.

Podemos observar no nosso dia-a-dia o quanto traços orais estão presentes nas pessoas ao nosso redor: carência, inveja, consumismo, egoísmo, possessividade, falta, vazio. Nos relacionamentos amorosos vemos constantemente os parceiros incidirem no mesmo erro: esperar que o outro preencha seu vazio existencial; assim um faz exigências ao outro impossíveis de serem satisfeitas, afinal só nos tornando amorosos é que recebemos esse tão almejado sentimento de amor, então o compartilhamos no lugar de exigi-lo.

No momento da terapia em que o problema da oralidade é suficientemente resolvido, abre-se um leque de possibilidades, e a pessoa fica cada vez mais próxima ao caráter genital, aquele maduro emocionalmente, auto-regulado, amoroso, criativo, com alegria de viver e potente orgasticamente. A falta anteriormente sentida transforma-se em uma sensação prazerosa de preenchimento. A riqueza interior passa a florescer cada vez mais, contagiando as pessoas ao redor, e o sentimento de gratidão pela vida traz mais alegria de viver.


Referências


KLEIN, M. Inveja e Gratidão – Um estudo das fontes inconscientes. Rio de Janeiro: Imago, 1974.

KLEIN, M; RIVIERE, J. Amor, ódio e reparação. Rio de Janeiro: Imago, 1970.

NAVARRO, F. Caracterologia pós-reichiana. São Paulo: Summus Editorial, 1995.

NAVARRO, F. Somatopsicopatologia. São Paulo: Summus Editorial, 1996.

OSHO. Meditação: a arte do êxtase. São Paulo: Cultrix / Pensamento, 1997.

STOLKINER, J. Abrindo-se aos mistérios do corpo – seminários de orgonomia. Porto Alegre: Alcance, 2008.

TROTTA, E. E. A fase oral na abordagem reichiana. In: integrantes da SWR/RS (Org.). Revista da Sociedade Wilhelm Reich/RS. Porto Alegre: Sociedade Wilhelm Reich/RS, vol. 1, n. 1, p. 25-34, 1997.

VOLPI, J. H.; VOLPI, S. M. Crescer é uma Aventura! Desenvolvimento emocional segundo a Psicologia Corporal. 2ª ed. Curitiba: Centro Reichiano, 2008.


Artigo apresentado como requisito parcial ao Curso de Especialização em Psicologia Corporal, ministrado pelo Centro Reichiano / RS



AUTOR e APRESENTADOR

Luciana Garbini De Nadal / Porto Alegre / RS / Brasil

Psicóloga formada pela UFRGS (CRP 07/16819), Especialista em Psicologia Corporal – Centro Reichiano / PR, Terapeuta de EMDR, terapeuta de Brainspotting avançado, Formação em Orgonomia Aberta (Stolkiner). Massagens Bioenergéticas (Ralph Viana). Meditações Ativas.




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1 Comment


Renato Borba
Renato Borba
Feb 07, 2020

Belíssimo artigo, bem fundamentado, uma escrita fluida e cuidada.


O escrito abre inúmeras reflexões sobre o tema dentre as quais a construção da própria identidade do bebê.


Parabéns!

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